O combate a sociedade de classes é o combate as relações de exploração e de opressão.Opressão que tem massacrado de forma ainda mais intensa as mulheres, as crianças e os adolescentes, as lésbicas e as pretas.
Não se combate a opressão de gênero sem lutar pelo fim de toda e qualquer opressão! Por isso é fundamental colocarmos em pauta o debate sobre o racismo nesta sociedade e sobre como nós e nossas irmãs pretas somos violentadas de forma ainda mais intensificada. Para isso, é preciso ação e estudo, e nada melhor do que a experiência do Black Panther para contribuir nesse processo de formação.
Socializaremos alguns textos, dando inicio a este material que faz parte de uma entrevista realizada com Angela Davis, que foi integrante do Black Panther.
Detalhes
Publicado em Terça, 12 Julho 2011
00:23
1. A INVISIBILIDADE DA MULHER NEGRA
Em primeiro lugar
gostaria de agradecer à Fundação Cultural Palmares pelo convite para participar
desse maravilhoso encontro de mulheres negras, especialmente pelo prazer de
poder homenagear Lélia Gonzales, fundadora do Grupo Nzinga – Coletivo de
Mulheres Negras do Rio de Janeiro. Penso que ela foi uma das figuras mais
importantes do movimento negro no Brasil. Sinto-me privilegiada de estar aqui e
compartilhar com vocês as nossas lutas, principalmente na medida em que estamos
caminhando para o próximo milênio.
Nesse encontro
vocês estão discutindo o tema da invisibilidade forçada da mulher negra. Eu sei
como isso ocorre. Ao mesmo tempo em que a mulher negra é considerada a mãe da cultura
brasileira, ela é ao mesmo tempo invisível. E vocês sabem que nos Estados
Unidos as mulheres negras têm lutado há décadas para acabar com essa
invisibilidade. Vejam os exemplos das escritoras negras contemporâneas como
Toni Morrison e Alice Walker.
Num certo sentido,
já percorremos um longo caminho e em outro continuamos invisíveis. Eu faço
parte de um comitê que indica pessoas para receberem o prêmio dado por uma
entidade negra denominada Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor
(National Association for the Advancement of Colored People/NAACP) e fiquei
assustada por encontrar dentre os premiados um número tão pequeno de mulheres
negras.
Mesmo quando a
gente olha a situação da mulher negra em Hollywood observamos que ela
desempenha um papel que lembra a "Mãe Preta". Os papéis desempenhados
por Whoopi Godberg, por exemplo, quase sempre são de personagens que facilitam
a relação entre pessoas brancas ou que iniciam crianças brancas na maturidade.
Um outro ponto que
gostaria de abordar é o fato de que, quando as mulheres negras adquirem mais
visibilidade, sempre se trata de mulheres de classe média. Gostaria de voltar
ao século XIX, quando existiam clubes de mulheres negras que utilizavam o
seguinte slogan: "Puxar para cima enquanto a gente avança". Isso para
explicar a relação atual entre as mulheres negras de classe média e as pobres a
partir de um novo projeto. Hoje, nos EUA, em função do crescente
empobrecimento, as mulheres negras pobres são responsabilizadas pela sua
própria miséria. As mães solteiras geralmente estão nos serviços da Previdência
Social e são colocadas como as reprodutoras da pobreza e da marginalidade.
Gostaria também de
compartilhar com vocês a idéia de um projeto que tem contado com a participação
de várias mulheres negras. Ele reúne escritoras e cineastas que passaram a
trabalhar juntamente com as mulheres mãe solteiras da Previdência Social. Essa
união foi realizada porque acreditamos que algumas de nós ainda têm voz.
Algumas de nós são mais visíveis, podem escrever e publicar, são jornalistas. E
algumas de nós podem filmar documentários.
Então, as mulheres
negras escritoras e cineastas se juntaram com as mães solteiras e essas
passaram a contar sua história de vida, que é levada para a imprensa negra,
para a revista black e a imprensa em geral. Daí porque nós, mulheres de classe
média, decidimos que temos responsabilidade com as mulheres vítimas da pobreza
e que vamos puxá-las para cima, ser solidárias ou, como se diz no Brasil,
"dar uma força".
Um problema que
temos enfrentado, atualmente é o seguinte: na medida em que os negros ascendem
socialmente, eles têm deixado para trás sua própria comunidade. Não querem
estabelecer nenhuma relação com as mulheres negras da Previdência Social, nem
ser relacionados às pessoas negras que estão na prisão. Porém, alguns de nós
estão dizendo: "eles são nossos irmãos, e se adquirimos um certo grau de
visibilidade, foi em cima dos ombros daqueles que ficaram para trás".
2. O LEGADO DO BLUES E A INFLUÊNCIA
NEGRA
Como essa
conferência está especificamente proposta para tratar da imagem da mulher negra
na sua relação cultural, a partir de agora falarei sobre uma pesquisa onde
procuro resgatar a relação entre o cultural e o político (2). Acho importante
que a gente olhe para a história de uma maneira não ortodoxa. Quando se chamam
hoje os nomes das nossas ancestrais feministas, percebemos que elas foram
educadas, escolarizadas. Eram mulheres que podiam escrever. Elas organizaram
vários clubes de mulheres no passado.
Mas o que aconteceu
com as mulheres que não escreviam? O que aconteceu com a mulher pobre da classe
trabalhadora? Existe alguma forma de recuperar a contribuição dessa mulher para
o feminismo negro? Por isso, passei a olhar e analisar o blues, observei as
mulheres cantoras de blues e me dei conta de que elas encontraram maneiras de
conversar sobre o feminismo, falando, por exemplo, de sexualidade. Às mulheres
de classe média não era permitido falar sobre sexualidade em público. Isso era
um tabu. No contexto do blues, contudo, podia-se explorar qualquer tema
relacionado à sexualidade.
Parece-me que essa
questão da sexualidade está ligada à luta do povo negro por liberdade. Por que
eu digo isso? Porque, se a gente reparar nas condições do povo negro
imediatamente após a abolição nos EUA (em 1865), percebemos que ele não tinha
liberdade econômica. Havia a demanda por "40 acres de terras e uma
mula", mas poucos conseguiram receber os 40 acres de terra. A maioria dos
negros não tinha liberdade econômica nem política. Então, no período imediatamente
posterior à escravidão, havia três formas através das quais os negros
conseguiam ser livres: o direito de ir e vir e deixar as plantações, o direito
à educação, pelo qual muitos deram suas próprias vidas, e o direito de escolher
seus parceiros sexuais. Essa liberdade em relação à sexualidade incorpora
muitas outras aspirações por liberdades. Já que não se tinha liberdade política
nem econômica, havia um certo grau de liberdade nas suas vidas sexuais. Quando
a gente pega o slogan feminista "o pessoal é político" e o analisa à
luz da história do povo negro como escravo, percebemos que o slogan adquire um
significado totalmente diferente.
O blues foi a
primeira forma artística que emergiu após a abolição. E as mulheres negras dos
anos 20 emergem como cantoras de blues, como trabalhadoras, como profissionais,
e assim foram gravando músicas. A questão da pesquisa histórica tem muita
importância para a nossa luta contemporânea. E nós, acadêmicas e intelectuais,
precisamos resgatar essa luta contemporânea por justiça. O grande desafio
contemporâneo nos EUA é fazer a ligação entre o público e o privado, entre o
pessoal e o político, de maneira a estabelecer a relação entre a violência
doméstica e a pública.
Durante muitos anos
nosso lema foi a unidade negra ou, talvez, o que se chama de solidariedade
racial entre homens e mulheres negras. Freqüentemente, no entanto, o silêncio
das mulheres negras diante da violência doméstica tem prejudicado muito suas
próprias vidas. A unidade negra da maneira como tem sido formulada protege um
companheiro do movimento negro que bate na mulher de responder publicamente por
sua atitude, sempre argumentando que "roupa suja se lava em casa".
Nós sabemos que a violência de um parceiro sobre a mulher é tão ruim quanto a
violência policial.
As mulheres
cantoras de blues dos anos 20 sabiam como falar desses problemas que acontecem
nos relacionamento, e o faziam abertamente. Mesmo considerando que elas não
tinham o vocabulário de que dispomos hoje para tratar do aspecto político da
violência doméstica, elas nunca esconderam isso, nunca fingiram que isso não
acontecia. E muitas dessas mulheres que cantavam compartilhavam com outras
mulheres o fato de que, dentro de uma situação de violência, o que elas deviam
fazer é cair fora.
É preciso aprender
a estabelecer a relação entre gênero, raça, classe e sexualidade. Nós temos que
lutar por saúde física, mental, emocional e espiritual. Sabemos que as mulheres
negras norte-americanas têm muito que aprender com as irmãs brasileiras sobre a
saúde espiritual. E aprender a reverenciar nossas ancestrais, permitir que elas
nos alimentem para que possamos continuar nossa luta. Nós temos que evocar
espíritos como o de Aqualtume, o de Beatriz Nascimento e o nome de Lélia
Gonzales. Para concluir esta parte, vou declamar um poema muito utilizado para
inspirar
as mulheres negras lá nos EUA:
Eu me levanto.
Você pode escrever a minha história
com o seu amargor e mentiras.
Você pode me atirar na lama.
Mas, ainda assim, como poeira, eu me
levanto.
Você acha que a minha sensualidade
incomoda?
Por que você está tão cheio de
rancor, tão entristecido e desanimado?
Porque eu vou caminhar como se eu
tivesse poços de petróleo na minha sala de estar.
Como a lua e o sol, com a certeza das
marés e com esperança.
Pulando bem alto, ainda assim eu me
levanto.
Você quer me ver quebrada e com a
cabeça e os olhos baixos,
Com os ombros caídos,
Com as lágrimas e enfraquecida pelo
meu choro.
A minha dureza ofende você?
Não fique tomando isso como se fosse
uma coisa ruim.
Porque eu sorrio como se tivesse
minas de ouro em meu quintal.
Você pode me atirar as suas palavras.
Você pode me cortar com seu olhar.
Você pode me matar com o seu ódio.
Mas, ainda assim, como o ar, eu me
levanto.
Minha sensualidade incomoda você?
Isso vem como surpresa.
Eu danço como se tivesse diamante no
ponto de encontro das minhas coxas.
Fora da vergonha da história eu me
levanto bem alto.
Encontro o passado que está enraizado
na dor.
Eu me levanto. Eu sou um oceano negro
Indo bem alto e longo, inchando, eu seguro
as marés.
E, deixando de lado as noites de
terror e de medo,
Eu me levanto ao nascer da manhã que
é maravilhosamente clara,
Eu me levanto trazendo os presentes
que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança do
escravo,
Eu me levanto...
3. A LUTA CONJUNTA POR LIBERDADE
A NAACP foi fundada
no início do século XX nos EUA para defender os direitos dos negros. Com
algumas de suas alas bem conservadoras e outras mais progressistas, não se pode
caracterizar a organização como um todo. Recentemente, pela primeira vez na
história, uma mulher foi eleita presidenta dessa entidade, e eu penso que isso
é importante. Na comunidade negra norte-americana existe um desejo muito forte
de fazer parte da luta. A identidade da comunidade negra foi muito construída
em cima de marchas e ações do movimento negro. A partir dos anos 90, porém, não
temos mais um movimento negro unificado em torno de uma luta.
A célebre Marcha de
Um Milhão de Homens atraiu muitas pessoas com aquele desejo de participar da
luta, mas o que sabemos agora é que o movimento dos anos 60 foi masculinista.
Assim como eles conquistaram muitas coisas, tornaram a mulher invisível,
representaram a liberdade do negro como a liberdade do macho. Partiam do
pressuposto de que, uma vez os homens se reunindo para resolver seus problemas,
praticamente todos os problemas da comunidade negra estariam resolvidos. E isso
não é verdade. Por outro lado, não havia uma análise política sobre quais eram
os problemas dos homens. Os organizadores da Marcha chamaram os homens para ir
até Washington (EUA) com o apelo sobre o exame de consciência de cada um e
basicamente propunham afirmá-los como chefes de família. Enquanto isso, as
mulheres foram solicitadas para ficar em casa e cuidar das crianças.
Mas elas não aceitaram
esse tipo de proposta. O grande desafio, portanto, é fazer a conexão entre o
privado e o público, entre o pessoal e o político, e aceitar a mulher negra
como uma parceira igual nessa luta por liberdade. Temos um caminho longo a
seguir...
4. O PAPEL DO ARTISTA E A LUTA
POLÍTICA (3)
Historicamente, nos
EUA, tem-se a idéia de que os artistas existem para promover o entretenimento
das pessoas. Dessa maneira, perde-se de vista o profundo papel dos artistas,
que é colocar uma nova consciência, uma vez que eles têm recursos visuais e
performáticos, usam o corpo como forma de expressão artística, enfim, possuem
modos de dizer as coisas que o discurso político não dá conta. Quando se fala
de uma pessoa que ficou famosa na Europa, por exemplo, isso é importante caso
ela seja uma porta-voz da luta contra o racismo.
Essa atitude para o
artista brasileiro é importante porque o Brasil encontra lá fora a idéia do
mito da democracia racial. A tradição oral é muito central na nossa cultura.
Mas isso também tem seus próprios problemas e contradições, a exemplo da
mercantilização da cultura oral, como acontece com a black music nos EUA de
hoje. Se isso torna a música disponível no mundo todo, cria, no entanto, uma
certa hegemonia da cultura afro-americana, tornando mais difícil reconhecer a
cultura original de cada país da diáspora, especialmente quando se observa o
tipo de mensagem que vem através das músicas, principalmente na faixa jovem.
5. A POLÍTICA DA ESQUERDA E A QUESTÃO
RACIAL
As organizações de
esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é
a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender
que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa
a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é
a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber
as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre
essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas.
Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.
6. COMO AS FEMINISTAS NEGRAS SE
RELACIONAM COM AS MULHERES EM GERAL E COM AS MULHERES NEGRAS EM PARTICULAR
O movimento
feminista é tão diverso que eu não sei se a gente pode falar de um só
feminismo. Nós temos feministas por toda a parte. Temos feministas no Partido
Republicano que são bastante conservadoras politicamente. E mesmo dentre as
feministas negras é preciso reconhecer a grande diversidade existente. Algumas
mulheres negras se referem a si próprias como mulheristas, usando o termo de
Alice Walker. Outras são feministas e fazem um trabalho mais prático, por
exemplo, contra a violência sexual. Há também feministas negras que são
acadêmicas, como Patrícia Hill Collins, que escreveu um livro sobre o
pensamento feminista negro. Dentre todos estes tipos, é evidente que elas não
concordam necessariamente umas com as outras, já que muitas são as diferenças.
O desafio consiste
em saber como trabalhar com as diferenças e contradições. A diferença pode ser
uma porta criativa. Nós não precisamos de homogeneidade nem de mesmice. Não
precisamos forçar todas as pessoas a concordar com uma determinada forma de
pensar. Isso significa que precisamos aprender a respeitar as diferenças de
cada pensar, usando todas as diferenças como uma "fagulha criativa",
o que nos auxiliaria a criar pontes de comunicação com pessoas de outros
campos. Por exemplo, quando se fala, na Grã Bretanha, de mulheres negras, está
se falando de mulheres asiáticas, caribenhas etc.
7. A MULHER NEGRA E A QUESTÃO DA
SAÚDE
Eu sou membro do
projeto nacional de saúde da mulher negra. Tal projeto não se refere apenas à
saúde física, mas também diz respeito à saúde mental, emocional e espiritual,
procurando ver a saúde de uma maneira holística. O Instituto Geledés conhece
esse projeto porque já participou de várias conferências sobre o assunto (4).
Assim, ao mesmo
tempo em que lutamos por um sistema de saúde pública, buscamos criar conceitos
para discutir as questões específicas da saúde da mulher negra, que são mais
afetadas por diabetes e hipertensão e morrem mais de câncer cervical e de mama
que as mulheres brancas.
Há também a questão
da auto-estima que estamos abordando nesta conferência. E, de certa forma,
mesmo algumas de nós que conseguiram chegar a determinado ponto ainda nos
sentimos muito mal com a gente mesmo, nos sentimos inferiores. E as mulheres
que se sentem assim terão muita dificuldade para ajudar as mais empobrecidas,
sobre cujos ombros elas se apoiaram para poder ascender. Nesse projeto nós
temos grupos de mulheres que conversam muito sobre os problemas que as estão
incomodando.
8. A GERAÇÃO DE ATIVISTAS DO
MOVIMENTO DOS DIREITOS CIVIS
A noção dos
direitos civis se tornou importante em termos da definição da luta nos anos 60.
Como se pode avaliar politicamente tal situação? A história nos dá capacidade
de avaliar o passado a partir do presente. E quando a gente olha para a
história, quer sempre enfatizar o que foi mais positivo e nos esquecemos de ver
as contradições. Porém, se olhássemos para as contradições ou os problemas,
isso nos ajudaria a ir para frente, a avançarmos.
O movimento dos
Direitos Civis foi muito importante, mas teve um problema em relação ao papel
da mulher na luta que não foi reconhecido. As mulheres organizaram o movimento,
organizaram o boicote de Montgomery (Alabama) no ano de 1955. E o que todo
mundo sabe é o nome do jovem pastor que as mulheres pediram para que agisse
como porta-voz do movimento dos Direitos Civis, um homem chamado Martin Luther
King Jr.
Ninguém sabe o nome
das mulheres que fizeram o trabalho organizativo. Na medida em que a gente
reverenciar o Dr. King, deve ao mesmo tempo criticar o movimento por seu
fracasso em reconhecer o papel central que as mulheres desempenharam. Veja um
exemplo na imagem de Rosa Lee Parks. Ela é representada como uma mulher que se
recusou a dar lugar a um branco no ônibus porque estava cansada. O que
geralmente se fala é que ela era uma empregada doméstica que voltava do
trabalho e, por conta do seu cansaço, desobedeceu a lei municipal racista do
sul dos EUA. E assim originou o movimento em 1955. Como se ela não soubesse o
que estava fazendo.
Mas a verdade é que
ela era uma pessoa politicamente consciente, era organizada e sabia exatamente
o que estava fazendo. Antes dela, duas outras mulheres já haviam sido presas na
mesma circunstância, só que esses dois casos anteriores não tiveram sucesso
devido a certas condições legais. Rosa Parks foi a terceira tentativa e com
sucesso. Isso explica o masculinismo do movimento dos Direitos Civis que a
gente deve avaliar e criticar.
Também devemos
reconhecer que após trinta anos o discurso dos Direitos Civis não tem o mesmo
poder. O mesmo discurso utilizado por Luther King para clamar por justiça para
todos é hoje usado por conservadores para propor o desmantelamento das ações
afirmativas. As recentes
iniciativas
ocorridas na Califórnia – e que são chamadas de "Iniciativa Californiana
pelos Direitos Civis" – visam derrubar conquistas da ação afirmativa sob a
alegação de que elas conteriam propostas que discriminam os homens brancos a
favor de negros, mulheres e pessoas de cor em geral.
Assim, o mesmo tipo
de linguagem utilizada pelo movimento dos Direitos Civis está sendo usado
atualmente por conservadores para proteger os
privilégios dos
homens brancos. Todas as conquistas que obtivemos nos convidam a repensar e
reconsiderar as possíveis vitórias futuras. Nada está escrito na pedra. O que é
progressivo em determinado contexto pode ser extremamente retrógrado em outro
momento da história.
9. A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA UTOPIA
Nos EUA, alguns de
nós da esquerda nos baseamos no tipo de discussão que se fazia no Partido Comunista
para ajudar a compreender os nossos projetos. Hoje não sou mais membro do
Partido Comunista. Alguns de nós estavam lutando para democratizar internamente
o Partido. Éramos da direção e assumimos a luta pela democratização, mas não
éramos autorizados a concorrer a cargos eletivos. Não conseguimos e perdemos
essa luta. Daí porque alguns comunistas e outros socialistas construímos uma
nova articulação, uma rede que se chama "Comitê de Correspondência"
da era revolucionária nos EUA.
Ainda acredito no
socialismo, mesmo conside
rando que os países
socialistas já não existem mais como antes. É preciso ver que o capitalismo
ainda está muito desenvolvido. Na verdade, o capitalismo globalizado se insinua
na vida das pessoas de uma forma que nunca tinha acontecido antes. Basta ver a
economia internacional em termos do turismo sexual e a maneira como as mulheres
trabalhadoras são exploradas dentro das Américas. Agora as corporações
internacionais usam a população negra como o seu porta-voz. Veja o exemplo de
Michael Jordan e da Nike, uma empresa que explora os trabalhadores negros dos
EUA, da Indonésia e do Vietnã. Nos EUA, nós estamos fazendo uma campanha para
boicotar a Nike. Lá temos uma camiseta com o slogan "Não faça isso".
Eu realmente penso
que utopia é quando a
gente se move em
novas direções e visões. Utopia no sentido de que necessitamos de visões para
nos inspirar e ir para frente. Isso tem que ser global. Precisamos achar um
modo de dar conta e saber como vamos interligar nossas lutas e visões e chegar
a algumas conclusões sobre como desenvolver novos valores revolucionários e,
principalmente, como desatrelar valores capitalistas de valores democráticos.